segunda-feira, 19 de maio de 2014

A cada mês, uma criança ou adolescente morre trabalhando no país.

Há cinco acidentes por dia. Lei prevê que qualquer forma de trabalho é proibida para menores até 14 anos.

Roseli Ritzel, mãe de Max, de 14 anos, que morreu em março, vítima de acidente de trabalho.
Agência O Globo / Nabor Goulart
RIO, SÃO PAULO, NOVO HAMBURGO e BELO HORIZONTE - Em 5 de março último, Max Fernandes Ritzel dos Santos, de 14 anos, estava no seu primeiro dia de trabalho em uma construção na cidade de São Leopoldo (RS). Ao manusear uma betoneira de misturar concreto, sem usar equipamento de proteção, sofreu um choque mortal.

— Era só um fiozinho desencapado, mas o choque estourou o coração dele. O meu orgulho é saber que morreu trabalhando e não na mão de algum policial ou traficante. Assim como Deus sabe a hora de pôr no mundo, sabe também a hora de recolher — chora a mãe Roseli Ritzel, que ainda deve R$ 1.300 pelo enterro do menino.

Na última quinta-feira, após uma semana no emprego, J.J.R., de 15 anos, limpava por dentro um forno de cal, de 13 metros de altura e dois de diâmetro. O forno desabou e mais de 13 toneladas de terra e entulho soterraram o adolescente. O trabalho de resgate pelo Corpo de Bombeiros de Formiga, cidade a 200 quilômetros de Belo Horizonte, durou 12 horas.

As duas atividades, por serem mais arriscadas e insalubres, são proibidas para menores de 18 anos no Brasil. Estão incluídas na lista de piores formas de trabalho infantil que o país se comprometeu a erradicar no ano que vem. A lei prevê que qualquer forma de trabalho é proibida para menores até 14 anos. Entre 14 e 16 anos, o jovem pode trabalhar apenas como aprendiz. E, mesmo após os 16, o trabalho em atividades perigosas ou insalubres é proibido.

A cada dia, mais de cinco crianças e adolescentes são vítimas de acidente de trabalho no Brasil. A cada mês, pelo menos uma criança ou adolescente morre no trabalho no país. Levantamento do Ministério da Saúde, com base nas notificações de unidades de saúde, lista 13.370 acidentes de 2007 a outubro de 2013 com trabalhadores de até 17 anos. Deste total, 504 foram intoxicações, principalmente com agrotóxicos. E 119 morreram trabalhando.

— São mortes que podem ser prevenidas. Não dá para a sociedade banalizar como se fosse parte da vida normal — disse Jorge Machado, coordenador geral da Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.

Quase três mortes por mês em 2012.

Os números da Saúde representam apenas a “ponta do iceberg”, para o médico sanitarista Francisco Pedra, da Fundação Oswaldo Cruz. Os registros vêm aumentando. A obrigação de notificar o acidente é de 2004. Em 2007, foram só 551, subindo para 3.565 em 2012. O número informado de mortes também vem crescendo. Eram cinco em 2007 e 34 em 2012, ou quase três mortes por mês:

— É um número bem abaixo do esperado. A rede de atenção é precária. Esses números são apenas a ponta do iceberg. Tem morte que só a família fica sabendo. Entram na vala comum das estatísticas de saúde como se o trabalho não tivesse nada a ver com isso. Sem contar as doenças ocupacionais como estresse e lesões por esforço repetitivo.

Pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2012), do IBGE, único levantamento que dá a dimensão do trabalho infantil no país, havia 3,5 milhões de crianças e adolescentes de até 17 anos trabalhando no Brasil. Dessas, 81 mil têm de 5 a 9 anos.

Os números dos acidentes vieram à tona na Comissão Parlamentar de Inquérito do Trabalho Infantil, da Câmara dos Deputados, que deve concluir os trabalhos em agosto. A deputada Luciana Santos (PCdoB/PE), relatora da CPI, pretende recomendar a criação de um cadastro de empresas, nos moldes da lista suja do trabalho escravo. A inclusão na lista poderia restringir o acesso a crédito público:

— Queremos que elas sejam impedidas também de participar de licitações públicas — diz Luciana.

A advogada Nilcéia Matheus também defende a divulgação dos nomes de empresas que fazem uso recorrente de trabalho infantil. Nilcéia afirma que são muitos os prejuízos para um menor que sofre acidente de trabalho. Ela conseguiu uma indenização para Walter Anastácio, que perdeu três dedos e a ponta do indicador da mão esquerda, aos 15 anos, em uma prensa numa empresa de esquadrias de alumínio no interior de São Paulo:

— O consumidor tem que ter acesso a esse tipo de informação e optar por escolher ou não um produto dessa marca.

A ampliação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), com transferência de renda condicionada à presença da criança na escola em tempo integral, é outra das propostas que a deputada pretende incluir no relatório:

— O núcleo duro do trabalho infantil resiste no serviço doméstico, no campo, no comércio, no carvão, na indústria têxtil e de cerâmica.

O Ministério de Desenvolvimento Social, por meio de nota, informou que em 20 anos houve redução de 88% no número de crianças de 5 a 9 anos submetidas ao trabalho no Brasil. Segundo o ministério, em 2013, “cerca de 850 mil crianças e adolescentes foram atendidos pelo Peti. Entre janeiro e setembro de 2013, foram investidos R$ 193,1 milhões no programa.” No programa, as crianças vulneráveis são identificadas e as famílias são inscritas nos programas sociais do governo e de transferência de renda. “Durante este período (outubro a dezembro de 2013) foram investidos R$ 246,4 milhões”.

Queda, o acidente mais comum.

Há alguns meses, J.T., que hoje tem 32 anos, recebeu do McDonald’s um broche por ter completado 15 anos de empresa. Seu último dia de trabalho na rede, porém, foi também há 15 anos, quando tinha 17 anos e sofreu uma queda durante o expediente. Depois de escorregar, ela bateu a nuca. A jovem ainda sofre com problemas de memória, mudanças bruscas de humor e tem dificuldades cognitivas. E briga na Justiça para conseguir o reconhecimento do acidente de trabalho e auxílio da empresa. Ela não recebe qualquer contribuição para o tratamento e a empresa se recusa a demiti-la.

— Eu era registrada como atendente, mas sempre trabalhei na limpeza. Escorreguei enquanto limpava a máquina de gelo. Não fui orientada a usar um sapato especial. Caí, desmaiei. Nem sequer fui levada ao médico — conta J.T, que ganhava R$ 1,60 por hora na época do acidente.

Depois da queda, J.T. diz que ao chegar em casa ainda se sentia mal, tinha muita dor de cabeça e tonturas. Foi levada ao hospital de ambulância. Lá permaneceu por semanas, em estado letárgico, de acordo com sua mãe, que teve de pedir demissão do emprego para cuidar da filha:

— Fizeram vários exames e tomografias na minha filha e não encontraram nenhum problema ósseo. 

Quando ela acordou, depois de semanas, estava agressiva e a encaminharam para o hospital psiquiátrico, onde passou meses. Lá diagnosticaram essa deficiência, causada pelo tombo.
J.T. toma dois comprimidos por dia, faz terapia e psicanálise uma vez por semana. Ela diz que já se sente melhor e deixou para trás os sete comprimidos diários e as três sessões de psicanálise semanais.

O McDonald’s afirmou, por meio de nota, que “a empresa respeita todas as leis trabalhistas, principalmente no que se refere ao tema ambiente de trabalho, e coloca-se à disposição para esclarecer qualquer fato pontual". J.T. não quis que seu nome fosse citado pelo GLOBO ao McDonald’s. Procurada pelo jornal, a rede de fast-food diz que “não há na companhia registros de situações como as descritas pelos ex-funcionários.”

As ocorrências mais comuns em acidentes de trabalho são queda, traumatismo e ferimento de punho e mão.

Na lista de ocupações mais afetadas, aparecem o atendente de lanchonete, o embalador a mão, o repositor de mercadorias, o trabalhador agropecuário, o auxiliar de escritório, o alimentador de linha de produção e o vendedor de comércio varejista.

Renato Mendes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que já foi o coordenador do Programa Internacional de Erradicação do Trabalho Infantil, cita três elementos para acelerar políticas de proteção: tornar universal e obrigatória a educação em tempo integral, gerar condições para que as famílias tenham trabalho decente e renda e conscientização social:

— Nenhuma política terá efeito se a sociedade ainda acreditar nos benefícios do trabalho infantil. A sociedade é a protetora primária dessas crianças.

O destino de Max foi traçado com a repetência escolar em 2011. No ano passado, ele começou a trabalhar num atelier de componentes para calçado e, logo depois, como servente de obras. A mãe de Max, Roseli Ritzel, lamenta a perda do filho mais velho, mas não tem a quem pedir Justiça. O empreiteiro que contratou Max é amigo da família e, assim como o pai do adolescente, trabalha apenas para sustentar a mulher e os filhos. É autônomo, sem empresa constituída. Segundo Roseli, o empreiteiro ajudou como pôde.

— Ele nos deu mil reais que pegou emprestado e também nos comprou algumas cestas básicas. É uma pessoa como nós, não teve culpa. Como é que vou defender que se puna alguém por uma fatalidade? — conforma-se Roseli, abraçada ao retrato do filho.

Cássia Almeida, Clarice Spit, Flavio Ilha e Roberta Scrivano

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